Apresentação Geral
A investigação a respeito das noções de bem e mal, justo e injusto, do conjunto de valores que os homens admitem por tradição, por hábito ou pela adesão a um conjunto de crenças, constitui o domínio da ética ou da moral.
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A respeito das noções de bem e mal, de justo e injusto, de felicidade, virtude, há uma série de discursos diferentes. Na coletânea de textos escolhidos aqui, a reflexão se desenvolverá em torno do conceito de virtude, por se tratar de um conceito-chave para se compreender as diferentes posições dos filósofos em seus sistemas morais.
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Em Aristóteles, a virtude será definida como eqüidistância entre dois vícios, um por excesso e outro por falta. Em todas as coisas trata-se de encontrar o meio, “achar o centro do círculo não é para qualquer um, mas para quem sabe”. Nisto consiste o ideal do sábio.
(...)Para os estóicos, o homem deve ser considerado como uma totalidade, onde o corpo e o espírito deveriam estar em harmonia perfeita. A virtude será então a arte de bem viver. E a prudência, em Sêneca, será a maior de todas as virtudes. Segundo ele, “quem possui a prudência guarda também a temperança; quem é temperante é constante; quem é constante não se perturba; quem não se perturba não tem tristeza; e quem não é triste é feliz” (Carta a Lucílio, 85, §2).
Na tradição cristã, a verdadeira virtude consistirá no desprezo de si mesmo e no amor a Deus, que deverá se manifestar nas diversas formas de amor ao próximo. E em Pascal nós veremos uma das formas mais elaboradas da moral cristã.
No século XVIII, (...) a reflexão de Voltaire aponta para a relatividade dos sistemas morais, para a impossibilidade de uma moral universal. No entanto, para este defensor implacável dos direitos do homem, não se pode fazer o que se bem entende. Todo homem deve respeitar as leis da sociedade e o homem honesto deve ser o modelo do bom cidadão.
Segundo Kant, a moral “não é propriamente dito a doutrina que nos ensina como devemos nos tornar felizes, mas como devemos nos tornar dignos de felicidade” ( Crítica da Razão Prática).Por isso a moral kantiana será a moral do dever e da imposição de normas a si mesmo.(...)Nesse contexto, a virtude será definida como “a força moral da vontade de um homem no cumprimento de seu dever”.
Na era contemporânea, caberá a Nietzsche questionar os fundamentos da moral e transformá-la num problema. E os conceitos clássicos de virtude, definidos segundo a moral socrática ou segundo a moral cristã, serão questionados de maneira radical.
Milton Meira do Nascimento, Primeira Filosofia – Tópicos de Filosofia Geral,
São Paulo, Ed. Brasiliense, 8ªed. 1990, pp.15-117.
Os constituintes do campo ético
Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor de seus atos e das condutas de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética.
A consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de se lançar na ação. Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais, as exigências feitas pela situação, as conseqüências para si e para os outros, a conformidade entre meios e fins (empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível), a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo (se o estabelecido for imoral ou injusto).
A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas.
O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral, principal constituinte da existência ética.
O sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições:
· ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;
· ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;
· ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas;
· ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta.
O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas.
Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade.
Ao contrário, é ativo ou virtuosos aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra é autônomo.
Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo,
Ed. Ática, 1999, pp.337-338.
Aristóteles (384-322 a.C.)
Devemos considerar agora o que é a virtude. Visto que na alma se encontram três espécies de coisas – paixões, faculdades e disposições de caráter -, a virtude deve pertencer a uma destas.
Por paixões entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e em geral os sentimentos que são acompanhados de prazer ou dor; por faculdade, as coisas em virtude das quais se diz que somos capazes de sentir tudo isso, ou seja, de nos irarmos, de magoar-nos ou compadecer-nos; por disposições de caráter, as coisas em virtude das quais nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com referência à cólera, nossa posição é má se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco, e boa se a sentimos moderadamente; e da mesma forma no que se relaciona com as outras paixões.
Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos chama bons ou maus devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ou vícios, e porque não somos louvados nem censurados por causa de nossas paixões (o homem que sente medo ou cólera não é louvado, nem é censurado o que simplesmente se encoleriza, mas sim o que se encoleriza de certo modo); mas pelas nossas virtudes e vícios somos efetivamente louvados ou censurados.
Por outro lado, sentimos cólera e medo sem nenhuma escolha de nossa parte, mas as virtudes são modalidades de escolha, ou envolvem escolha. Além disso, com respeito às paixões se diz que somos movidos, mas com respeito às virtudes e aos vícios não se diz que somos movidos, e sim que temos tal ou tal disposição.
Por estas mesmas razões, também não são faculdades, porquanto ninguém nos chama bons ou maus, nem nos louva ou censura pela simples capacidade de sentir as paixões. Acresce que possuímos as faculdades por natureza, mas não nos tornamos bons ou maus por natureza. (...).
Por conseguinte, se as virtudes não são paixões nem faculdades, só resta uma alternativa: a de que sejam disposições de caráter.
Mostramos, assim, o que é a virtude com respeito ao seu gênero.
Não basta, contudo, definir a virtude como uma disposição de caráter; cumpre dizer que espécie de disposição é ela.
Observemos, pois, que toda virtude ou excelência não só coloca em boa condição a coisa que é excelência como também faz com que a função dessa coisa seja bem desempenhada. Por exemplo, a excelência do olho torna bons tanto o olho como a sua função, pois é graças à excelência do olho que vemos bem. (...) Portanto, se isto vale para todos os casos, a virtude do homem também será a disposição de caráter que o torna bom e que o faz desempenhar bem a sua função.
(...) Por meio-termo no objeto entendo aquilo que é eqüidistante de ambos os extremos, e que é um só e o mesmo para todos os homens; e por meio-termo relativamente a nós, o que não é nem demasiado nem demasiadamente pouco - e este não é um só e o mesmo para todos. (...)
Se é assim, pois, que cada arte realiza bem o seu trabalho – tendo diante dos olhos o meio-termo e julgando suas obras por esse padrão; e por isso dizemos muitas vezes que às boas obras de arte não é possível tirar nem acrescentar nada, subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelência dessas obras, enquanto o meio-termo a preserva; para este, como dissemos, se voltam os artistas no seu trabalho - , e se, ademais disso, a virtude é mais exata e melhor que qualquer arte, como também o é a natureza, segue-se que a virtude deve ter o atributo de visar ao meio-termo. Refiro-me a virtude moral, pois é ela que diz respeito às paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e um meio-termo.
(...)Ora, a virtude diz respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvada são características da virtude. Em conclusão, a virtude é uma espécie de mediania, já que, como vimos, ela põe a sua mira no meio-termo.
Por outro lado, é possível errar de muitos modos (pois o mal pertence à classe do ilimitado e o bem à do limitado, como supuseram os pitagóricos), mas só há um modo de acertar. Por isso o primeiro é fácil e o segundo difícil – fácil errar a mira, difícil atingir o alvo. Pelas mesmas razões, o excesso e a falta são característicos do vício, e a mediania da virtude: Pois os homens são bons de um modo só, e maus de muitos modos.
A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consiste numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. (...)
(Aristóteles, Ética a Nicômaco, São Paulo, Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”).
Sêneca(2-66)
Não se obstinar contra as circunstâncias
XIV – 1. Devemos igualmente mostrar docilidade e não ser escravos demais das resoluções que tomamos; ceder de boa vontade à pressão das circunstâncias e não temer mudar, seja de resolução, seja de atitude, contanto que não caiamos na versatilidade, que é de todos os caprichos o mais prejudicial à nossa tranqüilidade. Porque se a obstinação é inevitavelmente inquieta e deplorável, visto que a fortuna lhe arranca a todo momento qualquer coisa, a leviandade é ainda muito mais penosa, porque ela não se fixa em nada. Estes dois excessos são funestos à tranqüilidade da alma: recusar-se a toda alteração e nada suportar.
2. É preciso, finalmente que nossa alma, renunciando a todos os benefícios exteriores, se recolha inteiramente em si mesma: que ela só confie em si e só se alegre consigo, que ela só aprecie seus próprios bens, que ela se afaste o mais possível dos estranhos e se consagre exclusivamente a si mesma, que os prejuízos materiais a deixem insensível e que ela chegue mesmo a encontrar um lado bom nas suas desgraças. (...)
XV – (...) 4. Observemos os motivos que cada uma de nossas alegrias e de nossas tristezas e compreenderemos a precisão deste pensamento de Bíon: “a vida dos homens se assemelha a uma série de experiências: ela não tem nem mais valor nem mais importância do que aquela de um embrião”. 5. Vale mais aceitar tranqüilamente os costumes comuns e os vícios da humanidade, sem se deixar levar nem ao riso nem às lágrimas: pois atormentar-se com os males dos outros é tornar-se perpetuamente infeliz, e alegrar-se com eles é adotar um prazer desumano. 6. Assim é mostrar uma sensibilidade inútil chorar porque o vizinho enterra seu filho e tomar ar de tristeza: igualmente, nas nossas desventuras pessoais, jamais nos devemos entregar à dor a não ser o quanto exige a natureza e não o que reclama o costume. Quantas pessoas não vertem lágrimas unicamente para que estas sejam vistas, e cujos olhos secam no mesmo instante em que ninguém mais as observa! Mas elas julgariam vergonhoso não chorar quando todo mundo o faz: o hábito de se sujeitar à opinião de outrem é um mal tão inveterado que o mais espontâneo de todos os sentimentos, a dor, tem também sua afetação.(...)
(Sêneca, Da Tranqüilidade da Alma, Col. “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural).
Blaise Pascal (1623-1662)
485 – A verdadeira e única virtude consiste, pois, em odiar a si mesmo (porquanto somos odiosos pela concupiscência) e em buscar um ser realmente amável para amá-lo. Mas, como não podemos amar o que está fora de nós, cumpre-nos amar um ser que esteja em nós, e que não seja nós, e isso é certo para todos. Ora, somente o ser universal assim é. O reino de Deus está em nós: o bem universal está em nós, somos nós mesmos e não somos nós.
(...)
487 – É falsa toda religião que, em sua fé, não adore um Deus como princípio de todas as coisas e que, em sua moral, não ame um só Deus como fim de todas as coisas.
488 − ... Mas é impossível que Deus seja o fim, se não é o princípio. Voltamos a vista para cima, mas apoiamo-nos na areia; e a terra fundir-se-á e cairemos olhando o céu.
489 – Se há um princípio de tudo, um só fim de tudo, tudo por ele, tudo para ele. É preciso, pois, que a verdadeira religião nos ensine a adorar só a ele e a amar só a ele. Mas, como somos incapazes de adorar o que não conhecemos e de amar outra coisa além de nós, é necessário que a religião, que nos adverte dos deveres, também nos advirta das incapacidades e que nos ensine os remédios. Ela nos mostra que por um homem tudo se perdeu, rompendo-se a ligação entre Deus e nós, e que por um homem essa ligação se refez.
Nascemos tão hostis a esse amor a Deus, e esse amor é tão imprescindível, que devemos ter nascidos culpados, ou Deus seria injusto.
490 – Não tendo os homens se habituado a formar o mérito, mas tão-somente a recompensá-los onde o já encontram formado, julgam Deus por si mesmos.
491 – A verdadeira religião deve ter por marca obrigar a amar a seu Deus. Isso é bem justo. No entanto, nenhuma outra o ordenou; a nossa fê-lo. Ela deve ainda ter conhecido a concupiscência e a impotência; a nossa fê-lo. Deve indicar os remédios para tanto, um dos quais é a prece. Nenhuma religião pediu a Deus que o amasse e o seguisse.
492 – Quem não odeia em si o seu amor-próprio, e esse instinto que o leva a fazer-se Deus, é bem cego. (...) É, pois, em uma manifesta injustiça que nascemos, da qual não podemos desfazer-nos e da qual devemos desfazer-nos.
No entanto, nenhuma religião notou que isso fosse um pecado, nem que nele tenhamos nascido, nem que fôssemos obrigados a resistir-lhe; nem pensou em dar-nos os remédios contra ele.
493 – A verdadeira religião ensina nossos deveres, nossas impotências (orgulho e concupiscência); e os remédios (humildade, mortificação).
494 – Fora preciso que a verdadeira religião ensinasse a grandeza, a miséria, impelisse à estima e ao desprezo de si mesmo, ao amor e ao ódio.
(Pascal, Pensamentos, Col. “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural,).
Imagem:Rembrandt - Aristóteles com o busto de Homero.