quinta-feira, 17 de junho de 2010

2º ano/Michel Foucault

Primeira Parte
Suplício

Capítulo I – O Corpo dos Condenados

“(...) No entanto, um fato é certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal” p.12

“(...)a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte da violência que está ligada a seu exercício” p.13.

“(...)Dir-se-á: a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são penas ‘físicas’: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo. Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições” p.14

“(...) uma execução que atinja a vida mais do que o corpo” p.15 MICHEL FOUCAULT.Vigiar e Punir.Petrópolis, Editora Vozes, 1997,p.12-15



BIOPODER – Controle e gestão do corpo, do tempo e do espaço e o sequestro das forças e da vida dos homens.

Na leitura foucaultiana, a disciplina é uma técnica que fabrica indivíduos úteis.

“(...) No espaço urbano que a medicina deve purificar ele (o hospital) é uma mancha sombria. E para a economia um peso inerte, já que dá uma assistência que nunca permite a diminuição da pobreza mas, no máximo, a sobrevivência de certos pobres e, assim, o crescimento de seu número, o prolongamento de suas doenças, a consolidação de sua má saúde, com todos os efeitos de contágio que dele podem resultar” MICHEL FOUCAULT, A Política da Saúde no século XVIII, in Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1995, p.203

“(...) A sociedade sem delinquência foi um sonho do século XVIII que depois acabou. A Delinquência era por demais útil para que se pudesse sonhar com algo tão tolo e perigoso como uma sociedade sem delinqüência. Sem delinqüência não há polícia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinqüente? Você fala de um ganho prodigioso. Esta instituição tão recente e tão pesada que é a polícia não se justifica senão por isto. Aceitamos entre nós esta gente de uniforme, armada enquanto nós não temos o direito de o estar, que nos pede documentos, que vem rondar nossas portas. Como isso seria aceitável se não houvesse os delinqüentes? Ou se não houvesse, todos os dias nos jornais, artigos onde se conta o quão numerosos e perigosos são os delinqüentes?”

MICHEL FOUCAULT. Sobre a Prisão in Op.cit., p.351.

terça-feira, 8 de junho de 2010

1º ano/ Introdução à Filosofia da Arte - Nietzsche (Pintura/Escultura)






























































Imagens:1. Velasquez - O Triunfo de Baco (Los Borrachos). 2.Tiziano - Baco e Ariadne. 3. Peter Paul Rubens - Silenus Bêbado. 4. [Grupo de]Laocoonte

1º ano/Introdução à Filosofia da Arte - Nietzsche (Música)



1º ano/Introdução à Filosofia da Arte - Nietzsche

[Dioniso e Apolo]
O nascimento da tragédia, primeira grande obra intempestiva de Nietzsche, é considerada por seu autor “o germe da sua filosofia”. Dioniso, “o ser mais transbordante de vida”, encarna nessa obra, além da embriaguez orgíaca, a superabundância existencial, a vida como poder criador. Esse deus grego será um tema constante na filosofia nietzschiana. Em oposição ao arrebatamento dionisíaco, Apolo é o símbolo do comedimento, do domínio racional e da serenidade.
Esses dois princípios antagônicos encontram sua reconciliação na tragédia de Sófocles e Ésquilo. Mas a tragédia morre quando Eurípides, sob a influência socrática, nela introduz um racionalismo responsável pela decadência dos instintos vitais. Mas o espírito dionisíaco sobreviverá na música alemã, mais precisamente no drama wagneriano, que Nietzsche considera como antídoto ao ascetismo socrático e cristão e em que ele vê o raiar de uma nova cultura, capaz de lutar contra a perda do sentido da vida e dos valores que se prendem a ele.
Noëlla Barraquin e Jacqueline Laffite. Dicionário Universitário dos Filósofos, São Paulo, Matins Fontes, 2007, p.226
§ 7
O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do cotidiano e a efetividade cotidiana retorna à consciência, ela é sentida, como tal, com nojo; uma disposição ascética, de negação da vontade, é o fruto desses estados. Nesse sentido o homem dionisíaco tem semelhança com Hamlet: ambos lançaram uma vez um olhar verdadeiro na essência das coisas, conheceram, e repugna-lhes agir; pois sua ação não pode alterar nada da essência eterna das coisas, eles sentem como ridículo ou humilhante esperarem deles que recomponham o mundo que saiu dos gonzos. O conhecimento mata o agir, o agir requer que se esteja envolto no véu da ilusão – esse é o ensinamento de Hamlet, não aquela sabedoria barata de Hans, o Sonhador, que por refletir demais, como que por um excesso de possibilidades, não chega a agir; não é a reflexão, não! – é o verdadeiro conhecimento, a visão da horrível verdade que sobrepuja todo motivo que impeliria a agir, tanto em Hamlet quanto no homem dionisíaco. Agora não prevalece nenhum consolo mais, a aspiração vai além de um mundo depois da morte, além dos próprios deuses; a existência, juntamente com seu reluzente espelhamento nos deuses ou em um Além imortal, é negada. Na consciência da verdade contemplada uma vez, o homem vê agora, por toda parte, apenas o susto ou absurdo do ser, entende agora o que há de simbólico no destino de Ofélia, conhece agora a sabedoria do deus silvestre Silenos: sente nojo.
Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo. O coro de sátiros do ditirambo é o ato de salvação da arte grega; no mundo intermediário desses acompanhantes de Dioniso esgotavam-se as crises descritas acima.
§16
(...) Duas sortes de efeitos costuma, pois, exercer a arte dionisíaca sobre a faculdade artística apolínea: a música incita uma intuição alegórica da universalidade dionisíaca, a música, em seguida, faz aparece a imagem alegórica em sua mais alta significação.
(...)
(...) Um alvo inteiramente diferente tem a arte plástica: aqui Apolo supera o sofrimento do indivíduo pela luminosa glorificação da eternidade do fenômeno, aqui a beleza triunfa sobre o sofrimento inerente à vida, a dor é, em certo sentido, mentirosamente afastada dos traços da natureza. Na arte dionisíaca e em seu simbolismo trágico, fala-nos a mesma natureza com sua voz verdadeira, sem disfarce: - “Sede como eu sou! Sob a incessante mudança dos fenômenos, a mãe primordial, eternamente criadora, que eternamente força a existir, que se regala eternamente com essa mudança de fenômenos!”
§24
Meus amigos, vocês, que acreditam na música dionisíaca, sabem o que significa para nós a tragédia. Nela, renascidos da música, temos o mito trágico – e nele vocês podem ter todas as esperanças e esquecer o mais doloroso! E o mias doloroso é para todos...o longo aviltamento sob o qual o gênio alemão, tornado estrangeiro em sua casa e em sua pátria, viveu a serviço de anões pérfidos. Vocês entendem estas palavras – assim como entenderão também, por fim, minhas esperanças.
FRIEDRICH NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, Col. Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p.31, 39, 40,44.
II
A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida.
A arte como única força superior contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista, antiniilista par excellence.
A arte como redenção do que conhece – daquele que vê o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico.
A arte como a redenção do que age – daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói.
A arte como a redenção do que sofre – como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.
FRIEDRICH NIETZSCHE. A Arte em “O Nascimento da Tragédia”, Col. Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p.50.




quinta-feira, 20 de maio de 2010

3º ano/ Filosofia e Religião

A palavra religião vem do latim: religio, formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular). A religião é um vínculo.

O bem e o mal

As religiões ordenam a realidade segundo dois princípios fundamentais: o bem e o mal (ou luz e a treva, o puro e o impuro).
Sob esse aspecto, há três tipos de religiões: as politeístas, em que há inúmeros deuses, alguns bons, outros maus, ou até mesmo cada deus podendo ser ora bom, ora mau; as dualistas nas quais a dualidade do bem e do mal está encarnada e figurada em duas divindades antagônicas que não cessam de combater-se; e as monoteístas, em que o mesmo deus é tanto bom quanto mau, ou, como no caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, a divindade é o bem e o mal provém de entidades demoníacas, inferiores à divindade e em luta contra ela.

Marilena Chauí, Convite à Filosofia. São Paulo, Editora Ática, 1999, p.298 e 303

1º ano/O Amor


O mito do nascimento
(...)
Por ocasião do nascimento de Afrodite, os deuses deram um grande banquete comemorativo, a que compareceu também Poros (Recurso), o Esperto, o filho de Métis, a Prudência. Enquanto se banqueteavam, aproximou-se Penia, a Pobreza, para mendigar as sobras da festa, e sentou-se à porta.
Embriagado pelo néctar – pois o vinho ainda não existia -, Poros se encaminhou para os jardins de Zeus e lá adormeceu, dominado pela embriaguez. Foi então que Penia, em sua miséria, desejou ter um filho de Poros. Deitou-se a seu lado e concebeu Eros. Por esse motivo é que Eros tornou-se mais tarde companheiro e servidor de Afrodite, pois foi concebido no dia em que esta nasceu. Além disso, Eros, devido à sua natureza, ama o que é belo e, como sabemos, Afrodite é bela.
E por ser filho de Poros e Penia, Eros tem o seguinte fado: é pobre, e muito longe está de ser delicado e belo, como todos vulgarmente pensam. Eros na realidade, é rude, é sujo, anda descalço, não tem lar, dorme no chão duro, junto aos umbrais das portas, ou nas ruas, sem leito nem conforto. Segue nisso a natureza de sua mãe que vive na miséria.
Por influência da natureza que recebeu do pai, Eros dirige a atenção para tudo que é belo é gracioso; é bravo, audaz, constante e grande caçador; está sempre a deliberar e a urdir maquinações, a desejar adquirir conhecimentos, filosofa durante toda sua vida; é grande feiticeiro, mago e sofista.
Não vive, propriamente, nem como imortal nem como mortal. No mesmo dia, ora floresce e vive, ora morre e renasce, se tem sorte, graças aos dons recebidos pela herança paterna. Rapidamente passam por suas mãos os proveitos que lhe trazem a sua esperteza. Assim, nunca se encontra em completo estado de miséria, nem, tampouco, na opulência.
Oscila, igualmente, entre a sabedoria e a tolice; devido ao seguinte motivo: nenhum dos deuses, como é claro, exerce a filosofia, ou deseja ser sábio, pois que como deus já o é; quem é sábio não filosofa; não filosofa nem deseja ser sábio, também quem é tolo – e aí reside o maior defeito da tolice: em considerar-se como alguma coisa de perfeito, conquanto, na realidade, não seja nem justa, nem inteligente. E quem não se considera incompleto e insuficiente, não deseja aquilo cuja falta não pode notar.
(...) A sabedoria, efetivamente, é uma das coisas mais belas que há e Eros tem como objeto do seu amor precisamente o que é belo. Logo, devemos reconhecer que Eros é necessariamente um filósofo, e como tal ocupa o meio-termo entre o sábio e o tolo. Isso, aliás, resulta de sua origem: Eros é filho de um pai sábio e ativo, e de uma mãe sem instrução nem iniciativa.
PLATÃO, O Banquete. Tradução Jean Melville, São Paulo, Editora Martin Claret, 2006, p.139-141.

3º ano - A Liberdade

A Liberdade

Determinismo ou Liberdade?

Afinal, “o homem é livre ou determinado?” (...)
Na verdade, o homem é determinado e livre. É preciso considerar os dois pólos contraditórios, superando o materialismo mecanicista segundo o qual o homem é determinado bem como as teses da liberdade incondicional. Segundo a concepção dialética, embora os pólos determinismo-liberdade se oponham, na verdade estão ligados:

· O homem é realmente determinado, pois se encontra situado em um tempo e espaço e é herdeiro de uma certa cultura;

· Mas o homem é também um ser consciente, capaz de conhecer esses determinismos; tal conhecimento permitirá a ação transformadora que, a partir da consciência das causas (e não à revelia delas), pode construir um projeto de ação.

Portanto, só a consciência do determinismo não é suficiente, pois a liberdade se torna verdadeira quando acarreta um poder, um domínio do homem sobre a natureza e sobre a sua própria natureza.

Maria Lúcia de A. Aranha e Maria Helena P.Martins – Filosofando,São Paulo, Editora Moderna,1994, p.299.



· Liberdade não é o mesmo que licenciosidade

Licencioso. 1.Que abusa da liberdade, que agride as normas e convenções sociais; desregrado, indisciplinado.(...)
5.que ou aquele que revela desregramento em seus atos, escritos e palavras; depravado, libertino. (Dicionário Houaiss).


1

[O homem é liberdade]

Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos e que, por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão. O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que há de orientar; porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa, portanto, que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: “O homem é o futuro do homem”. É perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, então essa frase está certa.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo,
Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p.15-16.



2

[A Liberdade do cidadão]

Os droit de l’homme, os direitos humanos, distinguem-se, como tais, dos droits du citoyen, dos direitos civis. Qual o homem que aqui se distingue do cidadão? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se chama o membro da sociedade burguesa de “homem”, homem simplesmente, e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o fato? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política.
Registremos, antes de mais nada, o fato de que os chamados direitos humanos, os droit’s de l’homme, ao contrário dos droit’s du citoyen [direitos do cidadão], nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade. A mais radical das Constituições, a Constituição de 1793, proclamou:
Declaração dos direitos do homem e do cidadão
Art. 2: Estes direitos, etc. ( os direitos naturais e imprescritíveis) são: a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.
Em que consiste a liberdade?
Art. 6: “ A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não conflite com os direitos de outro” ou, segundo a Declaração dos Direitos, de 1791: “A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não prejudique a ninguém”.
A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as cercas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma. (...)
A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada.
Em que consiste o direito humano à propriedade privada?
Art. 16 (Constituição de 1793): “O direito à propriedade é o direito assegurado a todo cidadão de gozar e dispor de seus bens, rendas, dos frutos de seu trabalho e de sua indústria como melhor lhe convier”.
O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta. (...)
(...) o homem, enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado como o verdadeiro homem, como homem, distinto do cidadão por se tratar do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma do cidadão abstrato. (...)
Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas “próprias forças” como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.

MARX, Karl. A questão judaica. Rio
de Janeiro, Achiamé, s.d.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

1º ano/Introdução ao Empirismo

Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nosso entendimento com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas ideias, ou as que possivelmente teremos.
Primeiro, nossos sentidos, familiarizados com os objetos sensíveis particulares, levam para a mente várias e distintas percepções das coisas, segundo os vários meios pelos quais aqueles objetos a impressionaram. Recebemos, assim, as ideias de amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo, doce e todas as ideias que denominamos qualidade sensíveis. Quando digo que os sentidos levam para a mente, entendo com isso que eles retiram dos objetos externos para a mente o que produziu estas percepções. A esta grande fonte da maioria das nossas ideias, bastante dependente dos nossos sentidos, dos quais se encaminham para o entendimento, denomino sensação.
A outra fonte pela qual a experiência supre o entendimento com ideias é a percepção das operações de nossa própria mente, que se ocupa das ideias que já lhe pertencem. Tais operações, quando a alma começa a refletir e a considerar, suprem o entendimento com outra série de ideias que não poderia ser obtida das coisas externas, tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o raciocinar, o conhecer, o querer e todos os diferentes atos de nossas próprias mentes.
(...) Mas, como denomino a outra de sensação, denomino esta de reflexão: ideias que se dão ao luxo de serem tais apenas quando a mente reflete sobre as próprias operações.

John Locke. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo, Nova Cultural, 1983. Col. Os Pensadores, p.159-160.



O empirismo

(...) os defensores do empirismo afirmam que a razão, a verdade e as ideias racionais são adquiridas por nós através da experiência. Antes da experiência, dizem eles, nossa razão é como uma “folha em branco”, onde nada foi escrito; uma “tabula rasa”, onde nada foi gravado. Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha escrever na folha, gravar na tábula, dar forma à cera.
(...)
Que dizem os empiristas?
Nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos, isto é, com as sensações. Os objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores, sentimos sabores e odores, ouvimos, sons, sentimos a diferença entre o áspero e o liso, o quente e o frio etc.
As sensações se reúnem e formam uma percepção; ou seja, percebemos uma única coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de várias e diferentes sensações. Assim, vejo uma cor vermelha e uma forma arredondada, aspiro um perfume adocicado, sinto a maciez e digo: “Percebo uma rosa”. A “rosa” é o resultado da reunião de várias sensações diferentes num só objeto de percepção.
As percepções, por sua vez, se combinam ou se associam. (...) A causa da associação das percepções é a repetição. Ou seja, de tanto algumas sensações se repetirem por semelhança, ou de tanto se repetirem no mesmo espaço ou próximas umas das outras, ou, enfim, de tanto se repetirem sucessivamente no tempo, criamos o hábito de associá-las. Essas associações são as ideias.
As ideias, trazidas pela experiência, isto é, pela sensação, pela percepção e pelo hábito, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os pensamentos.
A experiência escreve e grava em nosso espírito as ideias, e a razão irá associá-las, combiná-las ou separá-las, formando todos os nossos pensamentos.

Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo, Ática, 1999, p.71-72.


Imagem: John Locke(1632-1704)

2º ano/ ÉTICA

(...) quem sabe seria melhor simplesmente ignorar as questões éticas cuidando apenas dos assuntos técnicos tais como arranjar dinheiro, arranjar-se na vida, progredir na vida profissional, gozar o que for possível, conseguir força suficiente para dominar e não ser dominado...Ou quem sabe não seria melhor ainda simplesmente deixar-se levar pelo sistema e pelos acontecimentos?
Mas, neste caso, nós homens não estaríamos abdicando, renunciando ao nosso anseio de liberdade?

Álvaro L.M. Valls, O que é Ética, Col. Primeiros Passos, São Paulo, Brasiliense, p.18


Autonomia e heteronomia

A palavra autônomo vem do grego: autos (eu mesmo, si mesmo) e nomos (lei, norma, regra). Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a regra, a norma, a lei é autônomo e goza de autonomia e liberdade. Autonomia significa autodeterminação. Quem não tem capacidade racional para a autonomia é heterônomo. Heterônomo vem do grego: hetero (outro) e nomos; receber de um outro a norma, a regra ou a lei.

(Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo, Editora Ática, 1999, p.338)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

2º ano/ÉTICA

O que é ética hoje ? *
Sem uma discussão lúcida sobre a ética não é possível agir com ética
Marcia Tiburi


A palavra ética aparece em muitos contextos de nossas vidas. Falamos sobre ética em tom de clamor por salvação. Cheios de esperança, alguns com certa empáfia, exigimos ou reclamamos da falta de ética, mas não sabemos exatamente o que queremos dizer com isso. Há um desejo de ética, mas mesmo em relação a ele não conseguimos avançar com ética. Este é nosso primeiro grande problema.

O que falta na abordagem sobre ética é justamente o que nos levaria a sermos éticos. Falta reflexão, falta pensamento crítico, falta entender “o que é” agir e “como” se deve agir. Com tais perguntas é que a ética inicia. Para que ela inicie é preciso sair da mera indignação moral baseada em emoções passageiras, que tantos acham magnífico expor, e chegar à reflexão ética. Aqueles que expõem suas emoções se mostram como pessoas sensíveis, bondosas, crêem-se como antecipadamente éticos porque emotivos. Porém, não basta. As emoções em relação à política, à miséria ou à violência, passam e tudo continua como antes. A passagem das emoções indignadas para a elaboração de uma sensibilidade elaborada que possa sustentar a ação boa e justa - o foco de qualquer ética desde sempre - é o que está em jogo.

Falta, para isso, entendimento. Ou seja, compreensão de um sentido comum na nossa reivindicação pela ética. Falta para se chegar a isso, que haja diálogo, ou seja, capacidade de expor e de ouvir o que a ética pode ser. Clamamos pela ética, mas não sabemos conversar. E para que haja ética é preciso diálogo. E por isso, permanecemos num círculo vicioso em que só a inação e a ignorância triunfam.

Na inanição intelectual em voga, esperamos que os cultos, os intelectuais, os professores, os jornalistas, todos os que constroem a opinião pública, tragam respostas. Nem estes podem ajudar muito, pois desconhecem ou evitam a profundidade da questão. Há, neste contexto, quem pense que ser corrupto não exclui a ética. E isso não é opinião de ignorantes que não freqüentaram escola alguma, mas de muitos ditos “cultos” e “inteligentes”. Quem hoje se preocupa em entender do que se trata? Quem se preocupa em não cair na contradição entre teoria e prática? Em discutir ética para além dos códigos de ética das profissões pensando-a como princípio que deve reger nossas relações?

Exatamente pela falta de compreensão do seu fundamento, do que significa a ética como elemento estrutural para cada um como pessoa e para a sociedade como um todo, é que perdemos de vista a possibilidade de uma realização da ética. A ética não entra em nossas vidas porque nem bem sabemos o que deveria entrar. Nem sabemos como. Mas quando perguntamos pela ética, em geral, é pelo “como fazemos para sermos éticos”, que tudo começa. Aí começa também o erro em relação à ética. Pois ético é o que ultrapassa o mero uso que podemos fazer da própria ética quando se trata de sobreviver. Ética é o que diz respeito ao modo de nos comportamos e decidirmos nosso convívio e o modo como partilhamos valores e a própria liberdade. Ela é o sentido da convivência, mais do que o já tão importante respeito do limite próprio e alheio. Portanto, desde que ela diz respeito à relação entre um “eu” e um “tu”, ela envolve pensar o outro, o seu lugar, sua vida, sua potencialidade, seus direitos, como eu o vejo e como posso defendê-lo.

A Ética permanece, porém, sendo uma palavra vã, que usamos a esmo, sem pensar no conteúdo que ela carrega. Ninguém é ético só porque quer parecer ético. Ninguém é ético porque discorda do que se faz contra a ética. Só é ético aquele que enfrenta o limite da própria ação, da racionalidade que a sustenta e luta pela construção de uma sensibilidade que possa dar sentido à felicidade. Mas esta é mais do que satisfação na vida privada. A felicidade de que se trata é a “felicidade política”, ou seja, a vida justa e boa no universo público. A ética quando surgiu na antiguidade tinha este ideal. A felicidade na vida privada – que hoje também se tornou debate em torno do qual cresce a ignorância - depende disso.

Por isso, antes de mais nada, a urgência que se tornou essencial hoje – e que por isso mesmo, por ser essencial, muitos não percebem – é tratar a ética como uma trabalho da lucidez quanto ao que estamos fazendo com nosso presente, mas sobretudo, com o que nele se planta e define o rumo futuro. Para isso é preciso renovar nossa capacidade de diálogo e propor um novo projeto de sociedade no qual o bem de todos esteja realmente em vista.



* Publicado no Jornal O Estado de Minas, Domingo, 22 de abril de 2007


1º ano/Imagem crítica da Filosofia

A alegoria da caverna

Imagina homens que vivem numa espécie de morada subterrânea, em forma de caverna, que possui uma entrada que se abre em toda a largura da caverna para a luz; no interior dessa morada eles estão, desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo a ficarem imobilizados no mesmo lugar, só vendo o que se passa a sua frente, incapazes, em virtude das cadeias, de virar a cabeça. Quanto à luz, ela lhes vem de um fogo aceso numa elevação ao longe, atrás deles. Ora, entre esse fogo e os prisioneiros, imagina um caminho elevado ao longo do qual se ergue um pequeno muro, semelhante ao tabique que os exibidores de fantoches colocam a sua frente e por cima do qual exibem seus fantoches ao público (...). Figura agora, ao longo desse pequeno muro e ultrapassando-o, homens que transportam objetos de todos os tipos, como estatuetas de homens ou animais de pedra, madeira, modeladas em todos os tipos de matéria; dentre esses condutores, naturalmente, existem aqueles que falam e aqueles que se calam (...). Se os prisioneiros conseguissem conversar entre si, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que avistassem (...)?
Considera agora o que naturalmente lhes sobreviria se fossem libertos das cadeias e da ilusão em que se encontram. Se um desses homens fosse libertado e imediatamente forçado a se levantar, a voltar o pescoço, a caminhar a olhar a luz; ao fazer tudo isso ele sofreria e, em virtude de ofuscamento, não poderia distinguir os objetos cujas sombras visualizara até então (...). Não achas que ele consideraria mais verdadeiras as coisas que vira outrora do que aquelas que agora lhe eram designadas? (...). Supõe que este homem retornasse à caverna e se sentasse em seu antigo lugar; não teria ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente do pleno sol? (...). E se, para julgar essas sombras, tivesse de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não abandonaram as correntes, no momento em que ainda estivesse com a vista confusa e antes que tivesse reacostumado, não provocaria risos? Não diriam eles que sua escalada vertical lhe causara a ruína da vista e que, portanto, não valeria a pena tentar subir até lá? E se alguém tentasse libertá-los e conduzi-los até o alto, não achas que se eles pudessem pegá-lo e matá-lo não fariam?

Platão, A República, Livro VII



O mito da caverna

Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior.
A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre elas e os prisioneiros – no exterior, portanto – há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas.
Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.
Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (estatuetas das coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna. Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda a luminosidade possível é a que reina na caverna.
Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria outros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigindo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria.
Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens ( as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade.
Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.
Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras, e se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo. Mas, quem sabe, alguns poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidissem sair da caverna rumo à realidade.
O que é a caverna? O mundo em que vivemos. Que são as sombras das estatuetas? As coisas materiais e sensoriais que percebemos. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O filósofo. O que é a luz exterior do sol? A luz da verdade. O que é o mundo exterior? O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade. Qual o instrumento que liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A dialética. O que é a visão do mundo real iluminado? A Filosofia. Por que os prisioneiros zombam, espaçam e matam o filósofo (Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia ateniense)? Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro.

Marilena Chauí, Convite à Filosofia. São Paulo, Ed. Ática, 1999, p.p.40-41.

sábado, 10 de abril de 2010

1º ano/Imagem crítica da Filosofia

Primeiras Palavras

Inventores da palavra “filosofia”, os gregos não se teriam enganado. Se é preciso pensar bem é para viver melhor. Considerando o vício como desconhecimento da virtude, o platonismo fundou no pensamento ocidental a idéia segundo a qual “ninguém age mal voluntariamente” – formulação a que corresponde “ninguém erra por deliberação”. Se a medicina se encarregou de curar o corpo, à filosofia coube ser o consolo da alma aflita: “não é necessário fingir filosofar” dizia Epicuro, “mas efetivamente fazê-lo, pois temos interesse não em aparentar boa saúde, mas (em) de fato tê-la. (...) Nunca é cedo, tampouco tarde demais para cuidar da saúde da alma”. Nietzsche também dizia serem os artistas e os filósofos os médicos da civilização. A filosofia forma almas fortes pelo exercício da análise de si e do pensamento autônomo.
Epicuro considerava a filosofia não como instrução ou aquisição passiva de informações, mas uma atividade que, através de um generoso sentimento, a philia (amizade), ultrapassa a dimensão da sabedoria contemplativa e se expande em amor à humanidade. O logos filosófico traz a verdade iluminadora: é o discurso que se faz pharmakon, remédio que dissolve crenças e superstições – fonte do medo e dos males da alma. Seu objetivo “não é instruir os homens, mas tranquiliza-los”.
O pharmakon filosófico é o discurso terapêutico que busca a autarquia da alma e do corpo, o domínio da dor do corpo e da alma pela filosofia: “nunca se adie o filosofar quando se é jovem, nem (se) canse de fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora do filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz”. A noção de felicidade, por mais indeterminada que seja, é objeto da filosofia e da medicina. Para os gregos, a ciência era a busca da justa vida e do bem-viver. (Olgária Matos, Filosofia – A Polifonia da Razão, São Pulo, Scipione, 1997, pp.7-8).

terça-feira, 9 de março de 2010

1º ano - Imagem crítica da Filosofia

Atitude filosófica: indagar

Três perguntas importantes para a atitude filosófica:

Perguntar o que;

Perguntar como;

Perguntar por que.

A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar.

Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão.

Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando-se a si mesmo.

A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. (Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo, Ática, 1999, p.14).




[O que é filosofia]

(...) O problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer. A filosofia é, portanto, perturbadora da paz.

E a verdade o que será? A filosofia busca a verdade nas múltiplas significações do ser-verdadeiro segundo os modos do abrangente. Busca, mas não possui o significado e substância da verdade única. Para nós, a verdade não é estática e definitiva, mas movimento incessante, que penetra no infinito.

No mundo, a verdade está em conflito perpétuo. A filosofia leva esse conflito ao extremo, porém o despe de violência. Em suas relações com tudo quanto existe, o filósofo vê a verdade revelar-se a seus olhos, graças ao intercâmbio com outros pensadores e ao processo que o torna transparente a si mesmo.

Quem se dedica à filosofia põe-se à procura do homem, escuta o que ele diz, observa o que ele faz e se interessa por sua palavra e ação, desejoso de partilhar, com seus concidadãos, do destino comum da humanidade.

Eis por que a filosofia não se transforma em credo. Está em continua pugna consigo mesma. (Karl Jaspers, Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo, Cultrix, 1971, p.138).



Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem se canse de fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz. (EPICURO, A Filosofia e o seu objetivo,Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural,1985)




Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e com a riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela seja quanto possível melhor, e vou dizendo que a virtude não nasce da riqueza, mas da virtude vem, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como privados. (PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução Maria Lacerda de Souza)




quinta-feira, 4 de março de 2010

3º ano - O preconceito em relação à Filosofia



Filosofia: Inútil? Útil?
O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil.
Não poderíamos, porém, definir o útil de uma outra maneira?
(...)
Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos.
Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo.
Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Qual seria, então, a utilidade da Filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes. (Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo, Ática, 1999, p.18)