terça-feira, 12 de junho de 2007

3º ano Tema: A Liberdade




1

[O homem é liberdade]

Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos e que, por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão. O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que há de orientar; porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa, portanto, que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: “O homem é o futuro do homem”. É perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, então essa frase está certa.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo,
Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p.15-16.



2

[A Liberdade do cidadão]

Os droit de l’homme, os direitos humanos, distinguem-se, como tais, dos droits du citoyen, dos direitos civis. Qual o homem que aqui se distingue do cidadão? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se chama o membro da sociedade burguesa de “homem”, homem simplesmente, e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o fato? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política.
Registremos, antes de mais nada, o fato de que os chamados direitos humanos, os droit’s de l’homme, ao contrário dos droit’s du citoyen [direitos do cidadão], nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade. A mais radical das Constituições, a Constituição de 1793, proclamou:
Declaração dos direitos do homem e do cidadão
Art. 2: Estes direitos, etc. ( os direitos naturais e imprescritíveis) são: a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.
Em que consiste a liberdade?
Art. 6: “ A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não conflite com os direitos de outro” ou, segundo a Declaração dos Direitos, de 1791: “A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não prejudique a ninguém”.
A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as cercas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma. (...)
A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada.
Em que consiste o direito humano à propriedade privada?
Art. 16 (Constituição de 1793): “O direito à propriedade é o direito assegurado a todo cidadão de gozar e dispor de seus bens, rendas, dos frutos de seu trabalho e de sua indústria como melhor lhe convier”.
O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta. (...)
(...) o homem, enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado como o verdadeiro homem, como homem, distinto do cidadão por se tratar do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma do cidadão abstrato. (...)
Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas “próprias forças” como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.

MARX, Karl. A questão judaica. Rio
de Janeiro, Achiamé, s.d.


3

[Da Liberdade Humana]

Parece que o vulgo está persuadido de coisa diferente. A maioria dos homens, com efeito, parece crer que é livre na medida em que é permitido aos homens obedecerem ao apetite sensual, e que eles renunciam à sua autonomia enquanto são obrigados a viver segundo os preceitos da lei divina. Crêem, assim, que a Moral e a Religião e, em absoluto, tudo que se relaciona à fortaleza da alma são fardos de que esperam ser desonerados depois da morte para receber o preço da servidão, isto é, da Moral e da Religião; e não só esta esperança como também, e principalmente, o temor de serem punidos por duros suplícios depois da morte os induz a viver segundo as prescrições da lei divina tanto quanto o permitem a sua pequenez e impotência. E se os homens não tivessem esta esperança e este temor, se cressem, ao contrário, que as almas perecem com o corpo e que os infelizes, sobrecarregados com o fardo da Moral, não têm diante de si outra vida, voltariam ao seu natural e quereriam tudo governar segundo seu apetite sensual e obedecer mais à fortuna do que a si mesmos. O que não me parece menos absurdo do que alguém, porque não acreditasse poder nutrir eternamente seu corpo com bons alimentos, preferisse saturar-se de venenos e substâncias mortíferas; ou porque supusesse que a alma não é eterna ou mortal, preferisse ser louco e viver sem Razão; absurdos tais que não merecem quase ser notados.

ESPINOSA, Baruch. Ética, Livro V, Rio de Janeiro,
Ediouro, p.211-212.

Legenda imagem: Eugène Delacroix - A Liberdade Conduzindo o Povo.