A Morte(Thanatos)
Quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver.
(Montaigne)
O ser que se tornou perfeito, inteiramente maduro, quer morrer.
(Nietzsche)
1
Viver e morrer são a descoberta da finitude humana, de nossa temporalidade e de nossa identidade: uma vida é minha e minha, a morte. Esta, e somente ela, completa o que somos, dizendo o que fomos. Por isso, os filósofos estóicos propunham que somente após a morte, quando terminam as vicissitudes da vida, podemos afirmar que alguém foi feliz ou infeliz. Enquanto vivos, somos tempo e mudança, estamos sendo. Os filósofos existencialistas disseram: a existência precede a essência, significando com isso que nossa essência é a síntese final do todo de nossa existência. “Quem não soube morrer bem terá vivido mal”, afirmou Sêneca.
(...)
Morrer é um ato solitário. Morre-se só: a essência da morte é a solidão. O morto parte sozinho; os vivos ficam sozinho ao perdê-lo. Resta saudade e recordação.
Viver é estar com os outros. Vive-se com outrem: a essência da vida é a intercorporeidade e a intersubjetividade. Os vivos estão entrelaçados: estamos com os outros e eles estão conosco, somos, para os outros e eles são para nós.
Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo,
Ática, 1999, p.365-366.
2
DE COMO FILOSOFAR É APRENDER A MORRER
Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento.
(...)
Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim? E se o fato de ter companheiros vos pode consolar, pensai que o mundo inteiro segue caminho idêntico: “As raças futuras vos seguirão por sua vez” (Lucrécio).
Tudo obedece ao mesmo impulso a que obedeceis. Haverá algo que não envelheça como vós envelheceis? Milhares de homens, milhares de animais, milhares de outras criaturas morrem no mesmo instante que morreis: “não há uma só noite, nem um só dia em que não ouçam, misturados aos vagidos dos recém-nascidos, os gritos de dor em torno dos esquifes”(Lucrécio).
Michel de Montaigne, Ensaios, Livro I, Cap.XX.
São Paulo, Nova Cultural, 1996, p.p.97,103-104.
3
Olhos nos olhos da morte
Alguns anos atrás, eu estava viajando para a Europa, quando, de repente, o avião entrou numa zona de turbulência e começou a chacoalhar muito. Embora eu não tenha medo de avião, confesso que me assustei. Os piores pensamentos insistiam em se apresentar à minha consciência. Depois de algum tempo, resolvi ler para tentar distrair-me. Eu trazia comigo os Ensaios de Montaigne, o livro de Filosofia que mais gosto de ler e talvez o mais interessante para quem quer conhecer o ser humano na sua vida cotidiana e não em termos especulativos.
Lembrei-me de um capítulo intitulado Que filosofar é aprender a morrer. Platão já definira assim a Filosofia. Os estóicos, Cícero, autores medievais e até contemporâneos, como Heidegger, entendem que a Filosofia é, ao menos em parte, uma preparação para a morte. Comecei um tanto inquieto, a reler o capítulo. Segundo Montaigne, quem não teme a morte não teme nada; e quem nada teme viverá tranqüilo sem preocupações. A solução para viver feliz seria, então, preparar-se para a morte, pensando incessantemente nela.
Por exemplo, numa festa, em vez de beber e dançar, devemos estar preparados para um ataque fulminante, já que a morte pode surpreender-nos em qualquer situação. E não se deveria evitar a palavra “morte”, dizendo que “fulano passou desta para um a melhor”. Não. Devemos encarar o inevitável de frente, com os olhos abertos.
É bem verdade que, em capítulo posterior, Montaigne admite que essa estratégia não funcionou e que, ao pensar sempre na morte, estragava os bons momentos que poderia desfrutar. Montaigne entende que devemos no divertir, isto é, levar ao poucos o pensamento sobre uma coisa ruim para uma coisa boa, associando idéias intermediárias que desviem nosso pensamento e nos façam esquecer do que é desagradável. Parece-me que, para bem viver, essa segunda estratégia é superior ao pensamento fixo na morte.
Naquele momento, porém, em que o avião balançava e pulava, a reflexão sobre a morte surtiu em mim o efeito desejado. Preparei-me para o pior e, em vez de tentar evitar o pensamento que não me largava, decidi dedicar-lhe todas as minhas atenções. Fiquei bastante tempo concentrado na morte e consegui, finalmente, ficar calmo. Para a minha sorte, o resto do vôo não teve mais turbulências...
Plínio Junqueira Smith, Revista Discutindo Filosofia ano 1, nº4, São Paulo, Escala educacional, 2006, p.45.
Quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver.
(Montaigne)
O ser que se tornou perfeito, inteiramente maduro, quer morrer.
(Nietzsche)
1
Viver e morrer são a descoberta da finitude humana, de nossa temporalidade e de nossa identidade: uma vida é minha e minha, a morte. Esta, e somente ela, completa o que somos, dizendo o que fomos. Por isso, os filósofos estóicos propunham que somente após a morte, quando terminam as vicissitudes da vida, podemos afirmar que alguém foi feliz ou infeliz. Enquanto vivos, somos tempo e mudança, estamos sendo. Os filósofos existencialistas disseram: a existência precede a essência, significando com isso que nossa essência é a síntese final do todo de nossa existência. “Quem não soube morrer bem terá vivido mal”, afirmou Sêneca.
(...)
Morrer é um ato solitário. Morre-se só: a essência da morte é a solidão. O morto parte sozinho; os vivos ficam sozinho ao perdê-lo. Resta saudade e recordação.
Viver é estar com os outros. Vive-se com outrem: a essência da vida é a intercorporeidade e a intersubjetividade. Os vivos estão entrelaçados: estamos com os outros e eles estão conosco, somos, para os outros e eles são para nós.
Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo,
Ática, 1999, p.365-366.
2
DE COMO FILOSOFAR É APRENDER A MORRER
Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento.
(...)
Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim? E se o fato de ter companheiros vos pode consolar, pensai que o mundo inteiro segue caminho idêntico: “As raças futuras vos seguirão por sua vez” (Lucrécio).
Tudo obedece ao mesmo impulso a que obedeceis. Haverá algo que não envelheça como vós envelheceis? Milhares de homens, milhares de animais, milhares de outras criaturas morrem no mesmo instante que morreis: “não há uma só noite, nem um só dia em que não ouçam, misturados aos vagidos dos recém-nascidos, os gritos de dor em torno dos esquifes”(Lucrécio).
Michel de Montaigne, Ensaios, Livro I, Cap.XX.
São Paulo, Nova Cultural, 1996, p.p.97,103-104.
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Olhos nos olhos da morte
Alguns anos atrás, eu estava viajando para a Europa, quando, de repente, o avião entrou numa zona de turbulência e começou a chacoalhar muito. Embora eu não tenha medo de avião, confesso que me assustei. Os piores pensamentos insistiam em se apresentar à minha consciência. Depois de algum tempo, resolvi ler para tentar distrair-me. Eu trazia comigo os Ensaios de Montaigne, o livro de Filosofia que mais gosto de ler e talvez o mais interessante para quem quer conhecer o ser humano na sua vida cotidiana e não em termos especulativos.
Lembrei-me de um capítulo intitulado Que filosofar é aprender a morrer. Platão já definira assim a Filosofia. Os estóicos, Cícero, autores medievais e até contemporâneos, como Heidegger, entendem que a Filosofia é, ao menos em parte, uma preparação para a morte. Comecei um tanto inquieto, a reler o capítulo. Segundo Montaigne, quem não teme a morte não teme nada; e quem nada teme viverá tranqüilo sem preocupações. A solução para viver feliz seria, então, preparar-se para a morte, pensando incessantemente nela.
Por exemplo, numa festa, em vez de beber e dançar, devemos estar preparados para um ataque fulminante, já que a morte pode surpreender-nos em qualquer situação. E não se deveria evitar a palavra “morte”, dizendo que “fulano passou desta para um a melhor”. Não. Devemos encarar o inevitável de frente, com os olhos abertos.
É bem verdade que, em capítulo posterior, Montaigne admite que essa estratégia não funcionou e que, ao pensar sempre na morte, estragava os bons momentos que poderia desfrutar. Montaigne entende que devemos no divertir, isto é, levar ao poucos o pensamento sobre uma coisa ruim para uma coisa boa, associando idéias intermediárias que desviem nosso pensamento e nos façam esquecer do que é desagradável. Parece-me que, para bem viver, essa segunda estratégia é superior ao pensamento fixo na morte.
Naquele momento, porém, em que o avião balançava e pulava, a reflexão sobre a morte surtiu em mim o efeito desejado. Preparei-me para o pior e, em vez de tentar evitar o pensamento que não me largava, decidi dedicar-lhe todas as minhas atenções. Fiquei bastante tempo concentrado na morte e consegui, finalmente, ficar calmo. Para a minha sorte, o resto do vôo não teve mais turbulências...
Plínio Junqueira Smith, Revista Discutindo Filosofia ano 1, nº4, São Paulo, Escala educacional, 2006, p.45.
Imagem:Elihu Veder - The Cup of Death