terça-feira, 12 de junho de 2007

A Morte (Thanatos)


A Morte(Thanatos)

Quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver.
(Montaigne)

O ser que se tornou perfeito, inteiramente maduro, quer morrer.
(Nietzsche)

1

Viver e morrer são a descoberta da finitude humana, de nossa temporalidade e de nossa identidade: uma vida é minha e minha, a morte. Esta, e somente ela, completa o que somos, dizendo o que fomos. Por isso, os filósofos estóicos propunham que somente após a morte, quando terminam as vicissitudes da vida, podemos afirmar que alguém foi feliz ou infeliz. Enquanto vivos, somos tempo e mudança, estamos sendo. Os filósofos existencialistas disseram: a existência precede a essência, significando com isso que nossa essência é a síntese final do todo de nossa existência. “Quem não soube morrer bem terá vivido mal”, afirmou Sêneca.
(...)
Morrer é um ato solitário. Morre-se só: a essência da morte é a solidão. O morto parte sozinho; os vivos ficam sozinho ao perdê-lo. Resta saudade e recordação.
Viver é estar com os outros. Vive-se com outrem: a essência da vida é a intercorporeidade e a intersubjetividade. Os vivos estão entrelaçados: estamos com os outros e eles estão conosco, somos, para os outros e eles são para nós.

Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo,
Ática, 1999, p.365-366.





2

DE COMO FILOSOFAR É APRENDER A MORRER

Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento.
(...)
Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim? E se o fato de ter companheiros vos pode consolar, pensai que o mundo inteiro segue caminho idêntico: “As raças futuras vos seguirão por sua vez” (Lucrécio).
Tudo obedece ao mesmo impulso a que obedeceis. Haverá algo que não envelheça como vós envelheceis? Milhares de homens, milhares de animais, milhares de outras criaturas morrem no mesmo instante que morreis: “não há uma só noite, nem um só dia em que não ouçam, misturados aos vagidos dos recém-nascidos, os gritos de dor em torno dos esquifes”(Lucrécio).

Michel de Montaigne, Ensaios, Livro I, Cap.XX.
São Paulo, Nova Cultural, 1996, p.p.97,103-104.



3

Olhos nos olhos da morte

Alguns anos atrás, eu estava viajando para a Europa, quando, de repente, o avião entrou numa zona de turbulência e começou a chacoalhar muito. Embora eu não tenha medo de avião, confesso que me assustei. Os piores pensamentos insistiam em se apresentar à minha consciência. Depois de algum tempo, resolvi ler para tentar distrair-me. Eu trazia comigo os Ensaios de Montaigne, o livro de Filosofia que mais gosto de ler e talvez o mais interessante para quem quer conhecer o ser humano na sua vida cotidiana e não em termos especulativos.
Lembrei-me de um capítulo intitulado Que filosofar é aprender a morrer. Platão já definira assim a Filosofia. Os estóicos, Cícero, autores medievais e até contemporâneos, como Heidegger, entendem que a Filosofia é, ao menos em parte, uma preparação para a morte. Comecei um tanto inquieto, a reler o capítulo. Segundo Montaigne, quem não teme a morte não teme nada; e quem nada teme viverá tranqüilo sem preocupações. A solução para viver feliz seria, então, preparar-se para a morte, pensando incessantemente nela.
Por exemplo, numa festa, em vez de beber e dançar, devemos estar preparados para um ataque fulminante, já que a morte pode surpreender-nos em qualquer situação. E não se deveria evitar a palavra “morte”, dizendo que “fulano passou desta para um a melhor”. Não. Devemos encarar o inevitável de frente, com os olhos abertos.
É bem verdade que, em capítulo posterior, Montaigne admite que essa estratégia não funcionou e que, ao pensar sempre na morte, estragava os bons momentos que poderia desfrutar. Montaigne entende que devemos no divertir, isto é, levar ao poucos o pensamento sobre uma coisa ruim para uma coisa boa, associando idéias intermediárias que desviem nosso pensamento e nos façam esquecer do que é desagradável. Parece-me que, para bem viver, essa segunda estratégia é superior ao pensamento fixo na morte.
Naquele momento, porém, em que o avião balançava e pulava, a reflexão sobre a morte surtiu em mim o efeito desejado. Preparei-me para o pior e, em vez de tentar evitar o pensamento que não me largava, decidi dedicar-lhe todas as minhas atenções. Fiquei bastante tempo concentrado na morte e consegui, finalmente, ficar calmo. Para a minha sorte, o resto do vôo não teve mais turbulências...

Plínio Junqueira Smith, Revista Discutindo Filosofia ano 1, nº4, São Paulo, Escala educacional, 2006, p.45.
Imagem:Elihu Veder - The Cup of Death

1º e 2º ano Tema:Amor e Morte(Eros e Thanatos)




TEMA: O AMOR (EROS)

“O amor imaturo diz: amo-te porque necessito de ti; o amor maduro diz: necessito de ti porque te amo” Erich Fromm.


O Mito da Unidade Originária

A idéia de unidade equilibrada do amor só faz sentido porque não é apenas uma unificação dos amantes, mas sim uma reunificação, quer dizer, a recuperação de uma unidade originária perdida. (...) no famoso diálogo de Platão intitulado O Banquete (...) Aristófanes explica que o amor surgiu a partir de uma cisão originária. Segundo ele, os seres humanos de antigamente eram compostos de duas partes reunidas na forma de uma esfera, com duas cabeças, quatro braços e dois sexos (masculino/feminino masculino/masculino ou feminino/feminino). Eles eram muito orgulhosos de seu poder e tentaram invadir o céu, território dos deuses. Como punição por essa transgressão cada um deles foi partido em duas partes estanques. As metades violentamente cindidas sofriam muito pela perda da respectiva metade complementar (do mesmo sexo ou do sexo oposto) e desejavam intensamente uma reunificação. Então Zeus cria Eros: “para reconstituir a totalidade originária que se perdeu, fazendo de dois uma unidade e assim curar a natureza humana” (O Banquete, 191 d).
(...) A verdadeira ligação amorosa supõe um desejo de ser para sempre eterna; ela quer se manter até mesmo depois da morte. Aristófanes diz ainda, em O Banquete, que aquilo que os amantes mais querem é ouvir um deus dizendo: “(...)quando vocês morrerem, vocês não serão dois no mundo subterrâneo (Hades), mas um, juntos na morte, como um morto só” (Op. cit. 192 e).
Outra origem de Eros é mencionada por Sócrates, citando sua professora, a sacerdotisa Diotima de Mantinea. O deus do amor seria filho de Poros (em grego, riqueza) e de Penia (em grego, pobreza). Os deuses estavam festejando o aniversário de Afrodite, mas Penia não estava convidada. Quando Poros foi ao jardim descansar da sua embriaguez, Penia aproveitou-se da oportunidade, deitou-se com ele e gerou Eros (O Banquete, 203 b). A história parece indicar que Eros tem uma essência dual, pois é filho tanto da riqueza como da pobreza. É interessante notar que Poros estava repleto de néctar e ao mesmo tempo vazio de forças. Penia por sua vez, era pobre, mas mostrou ser rica de imaginação e astúcia. Ambos os pais carregam dentro de si a mesma ambigüidade que caracteriza Eros, nem absolutamente pleno, nem completamente vazio, mas cheio de uma carência da qual brotam riquezas e um excesso que esvazia e alivia.

Charles Feitosa. Explicando a Filosofia com Arte, Rio de Janeiro, Ediouro, 2004, p.153-156.


§76

Pensar mal significa tornar mau – As paixões se tornam más e pérfidas quando são consideradas mal e perfidamente. Assim o cristianismo conseguiu fazer de Eros e Afrodite – grandes potências capazes de se tornarem ideais – duendes infernais e espíritos enganadores, pelos martírios que fez surgir na consciência dos crentes por ocasião de todas as emoções sexuais. Não é pavoroso fazer de sentimentos necessários e regulares uma fonte de miséria interior e, dessa forma, querer fazer da miséria interior, em todo homem, algo necessário e regular? Além disso, é ainda uma miséria mantida em segredo e, com isso, mais profundamente arraigada: pois nem todos têm a coragem de Shakespeare, de confessar suas trevas cristãs nesse ponto, assim como ele o fez em seus sonetos. – Então algo, contra o qual se tem de combater, que se tem de manter dentro de limites ou, em certas circunstâncias, afastar inteiramente dos sentidos, deve ser sempre chamado de mau? Não é próprio de almas vulgares sempre pensar mal de um inimigo? E pode-se chamar Eros de inimigo? Em si os sentimentos sexuais têm em comum com os sentimentos de compaixão e adoração que aqui um ser humano, através de seu contentamento, faz bem a outro ser humano – não é tão freqüente encontrar na natureza arranjos tão benevolentes! E é precisamente isso que querem caluniar e corromper com a má consciência! – Por último, essa demonização de Eros teve um desfecho de comédia: o “demônio” Eros tornou-se pouco a pouco mais interessante aos homens do que todos os anjos e santos, graças aos cochichos e aos ares de mistério da Igreja em todas as coisas eróticas: ele fez com que, até nossos tempos, a história amorosa se tornasse o único interesse efetivo que é comum a todos os círculos, em um exagero inconcebível para a Antiguidade e que um dia ainda dará lugar à zombaria. Todas as nossas obras poesia e pensamento, da maior a mais ínfima, são marcadas pela extravagante importância com que a história amorosa entra nelas como história principal, e mais do que marcadas: talvez por causa delas a posteridade julgue que em todo legado da civilização cristã há algo de mesquinho e demente.

Friedrich Nietzsche. Aurora – Pensamentos sobre os Preconceitos Morais. Livro I , São Paulo, Nova Cultural, 1999, p.149.



O complexo de Amor

Este texto intitula-se “o complexo de amor”. A palavra complexo deve ser entendida em seu sentido literal: complexus, aquilo que se tece em conjunto. O amor é algo único, como uma tapeçaria que é tecida com fios extremamente diversos, de origens diferentes. Por trás de um único e evidente “eu te amo” há uma multiplicidade de componentes, e é justamente a associação desses componentes inteiramente diversos que faz a coerência do “eu te amo”. Em uma extremidade há um componente físico e, pela palavra físico, entende-se o componente biológico, que não se reduz ao componente sexual, mas inclui o engajamento do ser corporal.
No outro extremo, encontram-se os componentes mitológico e imaginário; incluo-me entre aqueles para quem o mito e o imaginário não representam uma simples superestrutura, e muito menos uma ilusão, mas, sim, uma profunda realidade humana.
(...)
La Rochefocauld afirmava que, se não houvesse romances de amor, este nunca seria conhecido. Seria a literatura constitutiva do amor, ou ela, simplesmente o catalisa, tornando-o visível, sensível e ativo? De qualquer modo, é pela palavra que simultaneamente se exprimem a verdade, a ilusão e a mentira que podem circundar ou construir o amor.
(...) pode-se constatar a origem do amor na vida animal. Podemos, mesmo que desconfiados, fazer projeções antropomorfas na vida animal (...) Diante da afeição de um cão, podemos dizer: como ele é gentil e afetuoso (...) E por que isso é justificado? Porque nós mesmos somos mamíferos evoluídos e sabemos que a afetividade desenvolveu-se entre os mamíferos, incluindo o cão.
(...)
Mas, entre os mamíferos, há algo a acrescentar: o calor. São os denominados animais “de sangue quente”. Há algo térmico em seus pêlos e, sobretudo na relação fundamental: a criança, o recém-nascido mamífero, sai prematuramente para um mundo frio.
Ele nasce na separação, mas em seus primeiros tempos, vive numa união quente com a mãe. A união na separação ou a separação na união é justamente o que vai caracteriza r o amor, não mais entre mãe e progenitura, mas entre homem e mulher. A relação afetiva, intensa, infantil com a mãe vai se metamorfosear, se prolongar, se estender entre os primatas e os humanos.
A hominização conservou e desenvolveu no adulto humano a intensidade das afetividades infantil e juvenil. Os mamíferos podem exprimir esta afetividade através do olhar, da boca, da língua, do som. Tudo aquilo que vem da boca se já se torna algo que fala do amor, antes mesmo de qualquer linguagem: a mãe que lambe o filho, o cão que lambe a mão; esses fatos já exprimem o que vai aparecer e desenvolver-se no mundo humano: o beijo. Aqui reside o enraizamento animal e mamífero do amor.
O que a hominização nos trouxe e o que caracteriza biologicamente o homo sapiens?
Inicialmente, a permanência da atração sexual entre mulher e homem. Ainda que existam entre os primatas períodos não-sexuados separados pelo período de estro – o momento em que a fêmea torna-se atraente – a humanidade vive na permanência da atração sexual. Além disso, a humanidade consumou o face-a-face amoroso, enquanto que, entre outros primatas, a união sexual se realiza por trás. (...) A partir daí, o rosto vai desempenhar um papel extraordinário.
(...)
No momento em que aflora o desejo, os seres sexuados são submetidos a uma dupla possessão, que se situa muito além deles e os ultrapassa.
O ciclo de reprodução genética, que nos invade pelo sexo, é algo que no possui subitamente e que, simultaneamente, possuímos: o desejo. Esta é a primeira possessão.
A outra é a que nasce do sagrado, do divino, do religioso. A possessão física que decorre da vida sexual reencontra a possessão psíquica oriunda da vida mitológica. Aí reside o problema do amor: somos duplamente possuídos e possuímos o que nos possuí, considerando-o física e miticamente, como nosso próprio bem.
(...) A humanidade cria instituições, institui a exogamia, as regras de parentesco, prescreve o casamento, proíbe o adultério. Mas é extremamente notável que o desejo e o amor ultrapassam, transgridem normas, regras e interditos: ou bem o amor é muito endógamo e torna-se incestuoso, ou é muito exógamo e torna-se adúltero, traidor do grupo, do clã, da pátria. A selvageria do amor o conduz à clandestinidade e à transgressão.
O amor, mesmo que decorrente de um desenvolvimento cultural e social, não obedece à ordem social: quando aparece, ignora barreiras, despedaça-se nelas ou simplesmente as rompe. O amor é filho de ciganos, é “enfant de bohème”.
(...)
Assim como tudo o que é vivo e humano, o amor encontra-se submetido ao segundo princípio da termodinâmica, que se define como um princípio de degradação e desintegração universais. Mas os seres vivos vivem de sua própria desintegração, combatendo-a pela regeneração.
Que significa viver?
Heráclito dizia: “Morrer de vida, viver de morte”. Nossas moléculas se degradam e morrem, sendo substituídas por outras. Vivemos utilizando o processo de nossa decomposição para nos rejuvenescer, até o momento em que isso não é mais possível. Acontece o mesmo com o amor, que só vive renascendo incessantemente.
(...) O amor implica a regeneração permanente do amor nascente. Tudo aquilo que se institui na sociedade, e também tudo que se instala na vida começam a ser afetados pelas forças de desintegração ou de insipidez. O problema da ligação amorosa é que ela é freqüentemente trágica, porque se consolida também, com freqüência em detrimento do desejo.
(...)
Eu diria sobre o amor o que em geral digo sobre o mito. Desde que um mito é reconhecido como tal, ele deixa de sê-lo. Atingimos esse ponto da consciência em que nos damos conta de que mitos são apenas mitos. Mas percebemos também que não podemos passar sem eles. Não se pode viver sem mitos, e eu incluiria, entre os “mitos”, a crença no amor, um dos mais nobres e poderosos e, talvez, o único mito ao qual deveríamos nos apegar. E não apenas o amor interindividual, mas o amor, num sentido muito mais amplo, sem, evidentemente, macular o amor individual. Efetivamente, enfrentamos um problema de convivialidade com nossos mitos, e isso implica não uma relação de compromisso e sim uma relação complexa de diálogo, antagonismo e aceitação.
(...) Adotar para o nosso mito de amor uma atitude de desafio implica sermos capazes de nos entregar a ele, dialogando com ele de modo crítico.
(...)
O amor contém um risco terrível porque não é somente um que se engaja nele. Engaja-se a pessoa amada, engajam-se também os que nos amam sem que nós os amemos, ou os que amam a pessoa amada sem que ela os ame.
(...)
Carregamos conosco uma necessidade tão grande amor que por vezes, um encontro, num momento propício – ou mesmo num momento mau – deslancha o processo de fulminação e da fascinação.
Nesse momento, projetamos sobre o outro nossa necessidade de amor, fixamo-lo e endurecemos, ignoramos o outro, transformando-o em nossa imagem e totem. Efetivamente, aqui reside uma das tragédias do amor: a incompreensão de si e do outro. Mas a beleza do amor, que reside na interpenetração da verdade do outro em si, implica encontrar sua verdade através da alteridade.
Concluo. A questão do amor resume-se a essa possessão recíproca: possuir o que no possui. Somos indivíduos produzidos por processos que nos precederam; somos possuídos por coisas que nos ultrapassam e que irão além de nós, mas, de certo modo, somos capazes de possuí-las.
Em qualquer lugar, a dupla possessão constitui sempre a trama e a experiência de nossas próprias vidas.

Edgar Morin. O Complexo de Amor. Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 1999.




Fragmentos de um discurso amoroso


1

Que é que eu penso do amor? – Em suma, não penso nada. Bem que eu gostaria de saber o que é, mas estando do lado de dentro, eu o vejo em existência, não em essência. O que quero conhecer (o amor) é exatamente a matéria que uso para falar (o discurso amoroso). A reflexão me é certamente permitida, mas como essa reflexão é logo incluída na sucessão das imagens, ela não se torna nunca reflexividade: excluído da lógica (que supõe linguagens exteriores umas às outras), não posso pretender pensar bem. Do mesmo modo, mesmo que eu discorresse sobre o amor durante um ano, só poderia esperar pegar o conceito “pelo rabo”: por flashes, fórmulas, surpresas de expressão, dispersos pelo grande escoamento do Imaginário; estou no mau lugar do amor, que é seu lugar iluminado: “O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, é sempre embaixo da lâmpada”.

Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso.
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981.
Imagens: René Magritte - Os Amantes II
Tiziano - Amor Sacro e Amor Profano.

3º ano Tema: A Liberdade




1

[O homem é liberdade]

Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos e que, por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão. O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que há de orientar; porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa, portanto, que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: “O homem é o futuro do homem”. É perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, então essa frase está certa.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo,
Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p.15-16.



2

[A Liberdade do cidadão]

Os droit de l’homme, os direitos humanos, distinguem-se, como tais, dos droits du citoyen, dos direitos civis. Qual o homem que aqui se distingue do cidadão? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. Por que se chama o membro da sociedade burguesa de “homem”, homem simplesmente, e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o fato? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política.
Registremos, antes de mais nada, o fato de que os chamados direitos humanos, os droit’s de l’homme, ao contrário dos droit’s du citoyen [direitos do cidadão], nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade. A mais radical das Constituições, a Constituição de 1793, proclamou:
Declaração dos direitos do homem e do cidadão
Art. 2: Estes direitos, etc. ( os direitos naturais e imprescritíveis) são: a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.
Em que consiste a liberdade?
Art. 6: “ A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não conflite com os direitos de outro” ou, segundo a Declaração dos Direitos, de 1791: “A liberdade é o poder próprio do homem de fazer tudo aquilo que não prejudique a ninguém”.
A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as cercas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma. (...)
A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada.
Em que consiste o direito humano à propriedade privada?
Art. 16 (Constituição de 1793): “O direito à propriedade é o direito assegurado a todo cidadão de gozar e dispor de seus bens, rendas, dos frutos de seu trabalho e de sua indústria como melhor lhe convier”.
O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente (à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta. (...)
(...) o homem, enquanto membro da sociedade burguesa, é considerado como o verdadeiro homem, como homem, distinto do cidadão por se tratar do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma do cidadão abstrato. (...)
Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas “próprias forças” como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.

MARX, Karl. A questão judaica. Rio
de Janeiro, Achiamé, s.d.


3

[Da Liberdade Humana]

Parece que o vulgo está persuadido de coisa diferente. A maioria dos homens, com efeito, parece crer que é livre na medida em que é permitido aos homens obedecerem ao apetite sensual, e que eles renunciam à sua autonomia enquanto são obrigados a viver segundo os preceitos da lei divina. Crêem, assim, que a Moral e a Religião e, em absoluto, tudo que se relaciona à fortaleza da alma são fardos de que esperam ser desonerados depois da morte para receber o preço da servidão, isto é, da Moral e da Religião; e não só esta esperança como também, e principalmente, o temor de serem punidos por duros suplícios depois da morte os induz a viver segundo as prescrições da lei divina tanto quanto o permitem a sua pequenez e impotência. E se os homens não tivessem esta esperança e este temor, se cressem, ao contrário, que as almas perecem com o corpo e que os infelizes, sobrecarregados com o fardo da Moral, não têm diante de si outra vida, voltariam ao seu natural e quereriam tudo governar segundo seu apetite sensual e obedecer mais à fortuna do que a si mesmos. O que não me parece menos absurdo do que alguém, porque não acreditasse poder nutrir eternamente seu corpo com bons alimentos, preferisse saturar-se de venenos e substâncias mortíferas; ou porque supusesse que a alma não é eterna ou mortal, preferisse ser louco e viver sem Razão; absurdos tais que não merecem quase ser notados.

ESPINOSA, Baruch. Ética, Livro V, Rio de Janeiro,
Ediouro, p.211-212.

Legenda imagem: Eugène Delacroix - A Liberdade Conduzindo o Povo.