sexta-feira, 23 de abril de 2010

1º ano/Introdução ao Empirismo

Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nosso entendimento com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas ideias, ou as que possivelmente teremos.
Primeiro, nossos sentidos, familiarizados com os objetos sensíveis particulares, levam para a mente várias e distintas percepções das coisas, segundo os vários meios pelos quais aqueles objetos a impressionaram. Recebemos, assim, as ideias de amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo, doce e todas as ideias que denominamos qualidade sensíveis. Quando digo que os sentidos levam para a mente, entendo com isso que eles retiram dos objetos externos para a mente o que produziu estas percepções. A esta grande fonte da maioria das nossas ideias, bastante dependente dos nossos sentidos, dos quais se encaminham para o entendimento, denomino sensação.
A outra fonte pela qual a experiência supre o entendimento com ideias é a percepção das operações de nossa própria mente, que se ocupa das ideias que já lhe pertencem. Tais operações, quando a alma começa a refletir e a considerar, suprem o entendimento com outra série de ideias que não poderia ser obtida das coisas externas, tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o raciocinar, o conhecer, o querer e todos os diferentes atos de nossas próprias mentes.
(...) Mas, como denomino a outra de sensação, denomino esta de reflexão: ideias que se dão ao luxo de serem tais apenas quando a mente reflete sobre as próprias operações.

John Locke. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo, Nova Cultural, 1983. Col. Os Pensadores, p.159-160.



O empirismo

(...) os defensores do empirismo afirmam que a razão, a verdade e as ideias racionais são adquiridas por nós através da experiência. Antes da experiência, dizem eles, nossa razão é como uma “folha em branco”, onde nada foi escrito; uma “tabula rasa”, onde nada foi gravado. Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha escrever na folha, gravar na tábula, dar forma à cera.
(...)
Que dizem os empiristas?
Nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos, isto é, com as sensações. Os objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores, sentimos sabores e odores, ouvimos, sons, sentimos a diferença entre o áspero e o liso, o quente e o frio etc.
As sensações se reúnem e formam uma percepção; ou seja, percebemos uma única coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de várias e diferentes sensações. Assim, vejo uma cor vermelha e uma forma arredondada, aspiro um perfume adocicado, sinto a maciez e digo: “Percebo uma rosa”. A “rosa” é o resultado da reunião de várias sensações diferentes num só objeto de percepção.
As percepções, por sua vez, se combinam ou se associam. (...) A causa da associação das percepções é a repetição. Ou seja, de tanto algumas sensações se repetirem por semelhança, ou de tanto se repetirem no mesmo espaço ou próximas umas das outras, ou, enfim, de tanto se repetirem sucessivamente no tempo, criamos o hábito de associá-las. Essas associações são as ideias.
As ideias, trazidas pela experiência, isto é, pela sensação, pela percepção e pelo hábito, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os pensamentos.
A experiência escreve e grava em nosso espírito as ideias, e a razão irá associá-las, combiná-las ou separá-las, formando todos os nossos pensamentos.

Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo, Ática, 1999, p.71-72.


Imagem: John Locke(1632-1704)

2º ano/ ÉTICA

(...) quem sabe seria melhor simplesmente ignorar as questões éticas cuidando apenas dos assuntos técnicos tais como arranjar dinheiro, arranjar-se na vida, progredir na vida profissional, gozar o que for possível, conseguir força suficiente para dominar e não ser dominado...Ou quem sabe não seria melhor ainda simplesmente deixar-se levar pelo sistema e pelos acontecimentos?
Mas, neste caso, nós homens não estaríamos abdicando, renunciando ao nosso anseio de liberdade?

Álvaro L.M. Valls, O que é Ética, Col. Primeiros Passos, São Paulo, Brasiliense, p.18


Autonomia e heteronomia

A palavra autônomo vem do grego: autos (eu mesmo, si mesmo) e nomos (lei, norma, regra). Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a regra, a norma, a lei é autônomo e goza de autonomia e liberdade. Autonomia significa autodeterminação. Quem não tem capacidade racional para a autonomia é heterônomo. Heterônomo vem do grego: hetero (outro) e nomos; receber de um outro a norma, a regra ou a lei.

(Marilena Chauí, Convite à Filosofia, São Paulo, Editora Ática, 1999, p.338)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

2º ano/ÉTICA

O que é ética hoje ? *
Sem uma discussão lúcida sobre a ética não é possível agir com ética
Marcia Tiburi


A palavra ética aparece em muitos contextos de nossas vidas. Falamos sobre ética em tom de clamor por salvação. Cheios de esperança, alguns com certa empáfia, exigimos ou reclamamos da falta de ética, mas não sabemos exatamente o que queremos dizer com isso. Há um desejo de ética, mas mesmo em relação a ele não conseguimos avançar com ética. Este é nosso primeiro grande problema.

O que falta na abordagem sobre ética é justamente o que nos levaria a sermos éticos. Falta reflexão, falta pensamento crítico, falta entender “o que é” agir e “como” se deve agir. Com tais perguntas é que a ética inicia. Para que ela inicie é preciso sair da mera indignação moral baseada em emoções passageiras, que tantos acham magnífico expor, e chegar à reflexão ética. Aqueles que expõem suas emoções se mostram como pessoas sensíveis, bondosas, crêem-se como antecipadamente éticos porque emotivos. Porém, não basta. As emoções em relação à política, à miséria ou à violência, passam e tudo continua como antes. A passagem das emoções indignadas para a elaboração de uma sensibilidade elaborada que possa sustentar a ação boa e justa - o foco de qualquer ética desde sempre - é o que está em jogo.

Falta, para isso, entendimento. Ou seja, compreensão de um sentido comum na nossa reivindicação pela ética. Falta para se chegar a isso, que haja diálogo, ou seja, capacidade de expor e de ouvir o que a ética pode ser. Clamamos pela ética, mas não sabemos conversar. E para que haja ética é preciso diálogo. E por isso, permanecemos num círculo vicioso em que só a inação e a ignorância triunfam.

Na inanição intelectual em voga, esperamos que os cultos, os intelectuais, os professores, os jornalistas, todos os que constroem a opinião pública, tragam respostas. Nem estes podem ajudar muito, pois desconhecem ou evitam a profundidade da questão. Há, neste contexto, quem pense que ser corrupto não exclui a ética. E isso não é opinião de ignorantes que não freqüentaram escola alguma, mas de muitos ditos “cultos” e “inteligentes”. Quem hoje se preocupa em entender do que se trata? Quem se preocupa em não cair na contradição entre teoria e prática? Em discutir ética para além dos códigos de ética das profissões pensando-a como princípio que deve reger nossas relações?

Exatamente pela falta de compreensão do seu fundamento, do que significa a ética como elemento estrutural para cada um como pessoa e para a sociedade como um todo, é que perdemos de vista a possibilidade de uma realização da ética. A ética não entra em nossas vidas porque nem bem sabemos o que deveria entrar. Nem sabemos como. Mas quando perguntamos pela ética, em geral, é pelo “como fazemos para sermos éticos”, que tudo começa. Aí começa também o erro em relação à ética. Pois ético é o que ultrapassa o mero uso que podemos fazer da própria ética quando se trata de sobreviver. Ética é o que diz respeito ao modo de nos comportamos e decidirmos nosso convívio e o modo como partilhamos valores e a própria liberdade. Ela é o sentido da convivência, mais do que o já tão importante respeito do limite próprio e alheio. Portanto, desde que ela diz respeito à relação entre um “eu” e um “tu”, ela envolve pensar o outro, o seu lugar, sua vida, sua potencialidade, seus direitos, como eu o vejo e como posso defendê-lo.

A Ética permanece, porém, sendo uma palavra vã, que usamos a esmo, sem pensar no conteúdo que ela carrega. Ninguém é ético só porque quer parecer ético. Ninguém é ético porque discorda do que se faz contra a ética. Só é ético aquele que enfrenta o limite da própria ação, da racionalidade que a sustenta e luta pela construção de uma sensibilidade que possa dar sentido à felicidade. Mas esta é mais do que satisfação na vida privada. A felicidade de que se trata é a “felicidade política”, ou seja, a vida justa e boa no universo público. A ética quando surgiu na antiguidade tinha este ideal. A felicidade na vida privada – que hoje também se tornou debate em torno do qual cresce a ignorância - depende disso.

Por isso, antes de mais nada, a urgência que se tornou essencial hoje – e que por isso mesmo, por ser essencial, muitos não percebem – é tratar a ética como uma trabalho da lucidez quanto ao que estamos fazendo com nosso presente, mas sobretudo, com o que nele se planta e define o rumo futuro. Para isso é preciso renovar nossa capacidade de diálogo e propor um novo projeto de sociedade no qual o bem de todos esteja realmente em vista.



* Publicado no Jornal O Estado de Minas, Domingo, 22 de abril de 2007


1º ano/Imagem crítica da Filosofia

A alegoria da caverna

Imagina homens que vivem numa espécie de morada subterrânea, em forma de caverna, que possui uma entrada que se abre em toda a largura da caverna para a luz; no interior dessa morada eles estão, desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo a ficarem imobilizados no mesmo lugar, só vendo o que se passa a sua frente, incapazes, em virtude das cadeias, de virar a cabeça. Quanto à luz, ela lhes vem de um fogo aceso numa elevação ao longe, atrás deles. Ora, entre esse fogo e os prisioneiros, imagina um caminho elevado ao longo do qual se ergue um pequeno muro, semelhante ao tabique que os exibidores de fantoches colocam a sua frente e por cima do qual exibem seus fantoches ao público (...). Figura agora, ao longo desse pequeno muro e ultrapassando-o, homens que transportam objetos de todos os tipos, como estatuetas de homens ou animais de pedra, madeira, modeladas em todos os tipos de matéria; dentre esses condutores, naturalmente, existem aqueles que falam e aqueles que se calam (...). Se os prisioneiros conseguissem conversar entre si, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que avistassem (...)?
Considera agora o que naturalmente lhes sobreviria se fossem libertos das cadeias e da ilusão em que se encontram. Se um desses homens fosse libertado e imediatamente forçado a se levantar, a voltar o pescoço, a caminhar a olhar a luz; ao fazer tudo isso ele sofreria e, em virtude de ofuscamento, não poderia distinguir os objetos cujas sombras visualizara até então (...). Não achas que ele consideraria mais verdadeiras as coisas que vira outrora do que aquelas que agora lhe eram designadas? (...). Supõe que este homem retornasse à caverna e se sentasse em seu antigo lugar; não teria ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente do pleno sol? (...). E se, para julgar essas sombras, tivesse de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não abandonaram as correntes, no momento em que ainda estivesse com a vista confusa e antes que tivesse reacostumado, não provocaria risos? Não diriam eles que sua escalada vertical lhe causara a ruína da vista e que, portanto, não valeria a pena tentar subir até lá? E se alguém tentasse libertá-los e conduzi-los até o alto, não achas que se eles pudessem pegá-lo e matá-lo não fariam?

Platão, A República, Livro VII



O mito da caverna

Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior.
A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre elas e os prisioneiros – no exterior, portanto – há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas.
Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.
Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (estatuetas das coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna. Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda a luminosidade possível é a que reina na caverna.
Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria outros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigindo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria.
Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens ( as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade.
Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.
Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras, e se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo. Mas, quem sabe, alguns poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidissem sair da caverna rumo à realidade.
O que é a caverna? O mundo em que vivemos. Que são as sombras das estatuetas? As coisas materiais e sensoriais que percebemos. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O filósofo. O que é a luz exterior do sol? A luz da verdade. O que é o mundo exterior? O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade. Qual o instrumento que liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A dialética. O que é a visão do mundo real iluminado? A Filosofia. Por que os prisioneiros zombam, espaçam e matam o filósofo (Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia ateniense)? Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro.

Marilena Chauí, Convite à Filosofia. São Paulo, Ed. Ática, 1999, p.p.40-41.

sábado, 10 de abril de 2010

1º ano/Imagem crítica da Filosofia

Primeiras Palavras

Inventores da palavra “filosofia”, os gregos não se teriam enganado. Se é preciso pensar bem é para viver melhor. Considerando o vício como desconhecimento da virtude, o platonismo fundou no pensamento ocidental a idéia segundo a qual “ninguém age mal voluntariamente” – formulação a que corresponde “ninguém erra por deliberação”. Se a medicina se encarregou de curar o corpo, à filosofia coube ser o consolo da alma aflita: “não é necessário fingir filosofar” dizia Epicuro, “mas efetivamente fazê-lo, pois temos interesse não em aparentar boa saúde, mas (em) de fato tê-la. (...) Nunca é cedo, tampouco tarde demais para cuidar da saúde da alma”. Nietzsche também dizia serem os artistas e os filósofos os médicos da civilização. A filosofia forma almas fortes pelo exercício da análise de si e do pensamento autônomo.
Epicuro considerava a filosofia não como instrução ou aquisição passiva de informações, mas uma atividade que, através de um generoso sentimento, a philia (amizade), ultrapassa a dimensão da sabedoria contemplativa e se expande em amor à humanidade. O logos filosófico traz a verdade iluminadora: é o discurso que se faz pharmakon, remédio que dissolve crenças e superstições – fonte do medo e dos males da alma. Seu objetivo “não é instruir os homens, mas tranquiliza-los”.
O pharmakon filosófico é o discurso terapêutico que busca a autarquia da alma e do corpo, o domínio da dor do corpo e da alma pela filosofia: “nunca se adie o filosofar quando se é jovem, nem (se) canse de fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora do filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz”. A noção de felicidade, por mais indeterminada que seja, é objeto da filosofia e da medicina. Para os gregos, a ciência era a busca da justa vida e do bem-viver. (Olgária Matos, Filosofia – A Polifonia da Razão, São Pulo, Scipione, 1997, pp.7-8).