O nascimento da tragédia, primeira grande obra intempestiva de Nietzsche, é considerada por seu autor “o germe da sua filosofia”. Dioniso, “o ser mais transbordante de vida”, encarna nessa obra, além da embriaguez orgíaca, a superabundância existencial, a vida como poder criador. Esse deus grego será um tema constante na filosofia nietzschiana. Em oposição ao arrebatamento dionisíaco, Apolo é o símbolo do comedimento, do domínio racional e da serenidade.
Esses dois princípios antagônicos encontram sua reconciliação na tragédia de Sófocles e Ésquilo. Mas a tragédia morre quando Eurípides, sob a influência socrática, nela introduz um racionalismo responsável pela decadência dos instintos vitais. Mas o espírito dionisíaco sobreviverá na música alemã, mais precisamente no drama wagneriano, que Nietzsche considera como antídoto ao ascetismo socrático e cristão e em que ele vê o raiar de uma nova cultura, capaz de lutar contra a perda do sentido da vida e dos valores que se prendem a ele.
Noëlla Barraquin e Jacqueline Laffite. Dicionário Universitário dos Filósofos, São Paulo, Matins Fontes, 2007, p.226
§ 7
O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do cotidiano e a efetividade cotidiana retorna à consciência, ela é sentida, como tal, com nojo; uma disposição ascética, de negação da vontade, é o fruto desses estados. Nesse sentido o homem dionisíaco tem semelhança com Hamlet: ambos lançaram uma vez um olhar verdadeiro na essência das coisas, conheceram, e repugna-lhes agir; pois sua ação não pode alterar nada da essência eterna das coisas, eles sentem como ridículo ou humilhante esperarem deles que recomponham o mundo que saiu dos gonzos. O conhecimento mata o agir, o agir requer que se esteja envolto no véu da ilusão – esse é o ensinamento de Hamlet, não aquela sabedoria barata de Hans, o Sonhador, que por refletir demais, como que por um excesso de possibilidades, não chega a agir; não é a reflexão, não! – é o verdadeiro conhecimento, a visão da horrível verdade que sobrepuja todo motivo que impeliria a agir, tanto em Hamlet quanto no homem dionisíaco. Agora não prevalece nenhum consolo mais, a aspiração vai além de um mundo depois da morte, além dos próprios deuses; a existência, juntamente com seu reluzente espelhamento nos deuses ou em um Além imortal, é negada. Na consciência da verdade contemplada uma vez, o homem vê agora, por toda parte, apenas o susto ou absurdo do ser, entende agora o que há de simbólico no destino de Ofélia, conhece agora a sabedoria do deus silvestre Silenos: sente nojo.
Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo. O coro de sátiros do ditirambo é o ato de salvação da arte grega; no mundo intermediário desses acompanhantes de Dioniso esgotavam-se as crises descritas acima.
§16
(...) Duas sortes de efeitos costuma, pois, exercer a arte dionisíaca sobre a faculdade artística apolínea: a música incita uma intuição alegórica da universalidade dionisíaca, a música, em seguida, faz aparece a imagem alegórica em sua mais alta significação.
(...)
(...) Um alvo inteiramente diferente tem a arte plástica: aqui Apolo supera o sofrimento do indivíduo pela luminosa glorificação da eternidade do fenômeno, aqui a beleza triunfa sobre o sofrimento inerente à vida, a dor é, em certo sentido, mentirosamente afastada dos traços da natureza. Na arte dionisíaca e em seu simbolismo trágico, fala-nos a mesma natureza com sua voz verdadeira, sem disfarce: - “Sede como eu sou! Sob a incessante mudança dos fenômenos, a mãe primordial, eternamente criadora, que eternamente força a existir, que se regala eternamente com essa mudança de fenômenos!”
§24
Meus amigos, vocês, que acreditam na música dionisíaca, sabem o que significa para nós a tragédia. Nela, renascidos da música, temos o mito trágico – e nele vocês podem ter todas as esperanças e esquecer o mais doloroso! E o mias doloroso é para todos...o longo aviltamento sob o qual o gênio alemão, tornado estrangeiro em sua casa e em sua pátria, viveu a serviço de anões pérfidos. Vocês entendem estas palavras – assim como entenderão também, por fim, minhas esperanças.
FRIEDRICH NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, Col. Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p.31, 39, 40,44.
II
A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida.
A arte como única força superior contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista, antiniilista par excellence.
A arte como redenção do que conhece – daquele que vê o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico.
A arte como a redenção do que age – daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói.
A arte como a redenção do que sofre – como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.
FRIEDRICH NIETZSCHE. A Arte em “O Nascimento da Tragédia”, Col. Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p.50.
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