Etienne La Boétie (1530 – 1563)
Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto têm vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolerá-lo e contradizê-lo. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que se deve mais lastimar-se do que espantar-se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as qualidades pois é desumano e feroz para com eles.
(...)
Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria vida que lhe pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um campo bárbaro contra o qual seria preciso despender o seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios, incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha. Chamaremos isto de covardia? Diremos que os que servem são covardes e moídos? É estranho, porém possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder-se-á então dizer com razão que é falta de fibra. Mas se cem, se mil agüentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá-lo, e que não se trata de covardia e sim desprezo ou desdém? Se não vemos cem, mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens não atacarem um só, de quem o mais bem tratado de todos recebe esse mal de ser servo e escravo, como poderemos nomear isso? Será covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um, não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e a língua se recusa nomear?
(...)
Até os bois gemem sob o peso do jugo; e na gaiola os pássaros se debatem (...). Em suma , se todas as coisas que têm sentimento, assim que os têm, sentem o mal da sujeição e procuram a liberdade; se os bichos sempre feitos para o serviço do homem só conseguem acostumar-se a servir com o protesto de um desejo contrário – que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?
(Discurso da Servidão Voluntária, trad. Laymert dos Santos, Ed. Brasiliense, 1982, pp. 12-13 e 18-19.)
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Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria vida que lhe pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um campo bárbaro contra o qual seria preciso despender o seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios, incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha. Chamaremos isto de covardia? Diremos que os que servem são covardes e moídos? É estranho, porém possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder-se-á então dizer com razão que é falta de fibra. Mas se cem, se mil agüentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá-lo, e que não se trata de covardia e sim desprezo ou desdém? Se não vemos cem, mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens não atacarem um só, de quem o mais bem tratado de todos recebe esse mal de ser servo e escravo, como poderemos nomear isso? Será covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um, não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que monstro de vício é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e a língua se recusa nomear?
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Até os bois gemem sob o peso do jugo; e na gaiola os pássaros se debatem (...). Em suma , se todas as coisas que têm sentimento, assim que os têm, sentem o mal da sujeição e procuram a liberdade; se os bichos sempre feitos para o serviço do homem só conseguem acostumar-se a servir com o protesto de um desejo contrário – que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?
(Discurso da Servidão Voluntária, trad. Laymert dos Santos, Ed. Brasiliense, 1982, pp. 12-13 e 18-19.)
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